Miranda: Fale-nos do processo de criação de perfumes de forma sintética versus a produção sustentável ou ecológica.
Delphine Jelk: É um processo muito complicado porque, nós “fazemos com o que temos”. A partir do momento em que tenhamos mais moléculas derivadas de “química verde”, será cada vez mais fácil de fazer novas criações. De uma coisa tenho a certeza, não quero apenas criar com óleos essenciais. No século XIX, criavam-se fragrâncias 100% naturais porque era tudo o que havia, eram aromas que recordavam bouquets de flores, por exemplo mas não duravam nem tinham profundidade. Com o aparecimento e utilização de moléculas sintéticas, como as que foram usadas por exemplo em Jicky, que foi a primeira fragrância “emocional” com a utilização de cominho e vanilina, a perfumaria ganhou uma nova dimensão.

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Quais são os maiores desafios, em perfumaria, de fazer projetos de forma sustentável e, também, em particular com a coleção Aqua Allegoria?
Por vezes, há um mal entendido entre o que encontramos na comida e em fragrâncias. Certamente que um tomate orgânico é melhor do que outro produzido de forma industrial. Já no que toca a perfumes, não é bem assim: é mais uma questão de sustentabilidade do que de saúde. Todas as fragrâncias que fazemos são testadas de forma rigorosa e, é importante saber, a natureza pode ser perigosa. Os ingredientes naturais podem ser potencialmente alergéneos. Por exemplo, se criarmos um aroma para crianças, não podemos usar ingredientes naturais: zero! Porque a natureza é demasiado alergénea. Vemos também o exemplo de uma mulher grávida: o médico diz-nos para não usar óleos essenciais. Os químicos não são o inimigo verdadeiro, não são perigosos para a saúde. É verdade que muitos dos químicos são derivados dos petro-químicos e isso tem de mudar. Além disso, a perfumaria não é a indústria mais poluente mas, a verdade é que estamos a trabalhar nisso, temos a responsabilidade de cuidar do planeta e das pessoas.

A sustentabilidade nos aromas de luxo: entrevista a Delphine Jelk, perfumista Guerlain
A coleção Aqua Allegoria é composta por 12 aromas frescos, em embalagens mais sustentáveis e todas recarregáveis. Cada aroma, a partir de € 90.

O que é, exatamente, a “química verde”?
Tentamos usar cada vez mais ingredientes de origem natural, que provém da natureza mas que foram transformados. Há um ingrediente muito usado, o linalool, proveniente da indústria petro-química que agora existe através da “química verde” na forma de terpeno do pinho, um ingrediente que existe dentro do pinho. Ou seja, usamos um ingrediente natural para o processar de forma química e isso é um exemplo do processo de “química verde” que usamos em muitos dos nossos aromas. Não se consegue mudar o mundo num só dia mas estamos muito envolvidos neste tipo de novos processos.

E a “química branca”, o que é?
A “química branca” é a produção via bio-tecnologia, por exemplo como a cana do açúcar em que se trabalha com enzimas.

A coleção Aqua Allegoria

Celebra as maravilhas do mundo e presta tributo à beleza da Natureza. São utilizadas matérias primas e notas excecionais, desenvolvidos pelos perfumistas-exploradores da Casa.

  • composta por até 95% de ingredientes de origem natural.
  • contidas num frasco de enroscar recarregável e reciclável fabricado em França com pelo menos 15% de vidro reciclado.
  • Formulada exclusivamente com álcool proveniente da agricultura biológica, uma estreia para Guerlain.

E que mais exemplos de sustentabilidade e aproveitamento de materiais pode dar?Também usamos a água das flores, como a água de rosas, recolhida aquando da destilação e da separação do óleo da água. Até ao momento não se fazia nada com esta água mas agora podemos usá-la e retirar apenas a molécula fragrante e reutilizá-la num perfume. Isto é muito bonito porque é outra forma de ter mais uma parte da rosa na fragrância. Chamamos a isto o “up-cycling” e fazemo-lo com frequência, não só com a rosa mas com outras matérias primas.

A reformulação da coleção Aqua Allegoria é o melhor exemplo destas práticas?
Sem dúvida, a Aqua Allegoria é a melhor embaixadora para esta forma cada vez mais sustentável de trabalhar a perfumaria. Por exemplo, usamos álcool orgânico de beterraba, o que não foi um processo muito fácil porque, quando nos interessámos por álcool orgânico, só existia de álcool trigo e este ingrediente não cheira tão bem como o álcool de beterraba que é o tipo de álcool mais usado neste momento. Tem uma nota ligeiramente frutada que casa muito bem com qualquer perfume.

A sustentabilidade nos aromas de luxo: entrevista a Delphine Jelk, perfumista Guerlain
Delphine Jelk, a perfumista Guerlain que esteve em Portugal para o relançamento da coleção Aqua Allegoria

É um processo fácil, o de extração de álcool da beterraba?
Não é muito fácil porque para os produtores, cultivar de forma orgânica tem mais desafios, porque precisam de ter uma grande capacidade de produção para dar resposta à quantidade de álcool necessária. Felizmente, conseguimos assegurar essa produção para esta linha e contamos expandir para outros perfumes da marca. É importante que se perceba que não podemos mudar tudo num só dia. Alegra-nos fazer um pouco melhor, todos os dias.
O grande desafio é manter a qualidade de sempre, preservando as qualidades que são conhecidas nos perfumes Guerlain.

Têm uma previsão de quando os restantes perfumes da marca vão ser produzidos desta forma?
Não temos uma data definida mas é importante dizer que nenhuma fórmula dos nossos perfumes tem algum risco para a saúde, apenas que ambicionamos continuar fazer fórmulas mais ecológicas.

É a primeira mulher perfumista numa Casa com uma longa tradição de “narizes” masculinos, conte-nos como chegou à Guerlain.
Quando me tornei perfumista, apaixonei-me pela marca Guerlain, é a Casa mais bonita, é uma Casa de Beleza. Eu venho da Moda e fico contente de estar numa marca que se dedica apenas à beleza.
Ainda não trabalhava na Guerlain mas já estudava perfumaria, quando me pus a imaginar um perfume para a Guerlain que se dirigisse à consumidora mais jovem. Queria fazer um “Mademoiselle Guerlain”, tinha isso mente na mesma altura em que fui ver o filme Marie Antoinette da Sofia Copolla e foi como uma revelação: isto é a minha “Mademoiselle Guerlain”, ela é do passado e, ao mesmo tempo, tão moderna. Inspirei-me numa das cenas do filme em que ela está com uma amiga e comem macarons e comecei a trabalhar num acorde de rosa-macaron e queria que fosse um pouco “rock” e adicionei-lhe um chá fumado, patchouli, anis e elementos. Na altura eu trabalhava com um fornecedor de ingredientes e decidi apresentar à Guerlain esta minha ideia e eles adoraram e decidiram chamar-lhe “La Petite Robe Noir”. Foi assim que começou esta ligação que não partiu de um briefing mas sim de uma criação de impulso. Tornou-se num enorme sucesso assim que foi lançado e, desde essa altura, comecei a trabalhar para a Guerlain como perfumista da Casa.

E como se tornou perfumista?
Cresci na Suiça e queria ser farmacêutica mas, ao mesmo tempo, era muito criativa, tinha muitas ideias e queria fazer algo mais. Depois de terminar o bacharelato decidi ir para Paris e procurei estudar que não pudesse fazer na Suiça e escolhi design de Moda. Ainda durante o curso, eu sabia que queria fazer algo mais além da moda e então, quando criei uma coleção masculina onde juntei cachemira e linho, quis dar lhe um universo poli-sensorial e contactei a Firmenich [empresa que desenvolve perfumes] e pedi-lhes para criarem um aroma em torno da cachemira e outro em torno do linho. No curso, recebi um prémio com essa criação conjunta de moda-perfume e, quando concluí os estudos recebi duas ofertas de emprego: uma para trabalhar na Casa Margiela e outra para trabalhar na Firmenich em Genéva. Foi uma escolha difícil porque não queria voltar para a Suiça mas acabei por ir e ser responsável por estar envolvida nas propostas das casas de Moda que queriam desenvolver perfumes. Foi nessa altura que percebi que queria mesmo ser perfumista, ao tomar contato com o processo de criação dos perfumes, era o que me fazia feliz.
Depois ouvi falar de uma escola em Grasse, no sul de França, onde só aceitavam 7 alunos e eramos mais de 200 a concorrer. E pensei: se entrar, vou despedir-me e vou para lá estudar e foi o que aconteceu. É essa a história.