Apesar de a Beleza ser muitas vezes associada ao glamour e às promessas dos produtos acabados, nos bastidores existe um trabalho fascinante: por trás de cada textura, fragrância ou fórmula está o rigor científico aliado à criatividade.
Nesta entrevista, Violante Medeiros, bióloga molecular partilha o seu percurso, desde a investigação genética até ao desenvolvimento de cosméticos únicos que refletem os valores da marca portuguesa Bam and Boo. Inspirada pela biodiversidade açoriana e guiada por um compromisso com a sustentabilidade, a cientista desmonta mitos cosméticos, partilha curiosidades sobre os ingredientes e prova que a ciência pode – e deve – andar de mãos dadas com a sensorialidade.

Quem é Violante Medeiros – a velha pergunta do “o que é que queria ser quando fosse grande” – e qual o seu percurso até chegar à Bam and Boo?

Sou uma pessoa de ciências, sempre quis saber por que é que as coisas são como são. Vim para Lisboa estudar Biologia e, na altura [em 1997, 1998], queria tirar a variante de Genética, perceber o que é que o mundo molecular tem de especial, como é que regulamos os nossos genes e que impacto é que isso tem. Mas, a esse nível, a investigação já mudou muito; já substituímos aquela noção de que os genes nos definem. Hoje em dia, sabemos que não, que muitos dos genes podem ser alterados. Há um controlo epigenético que permite modelar a ação dos genes, modelar a ação proteica, combater o envelhecimento, entre outras coisas, que é uma área mais ligada ao que faço agora, mas que também tem muito a ver com saúde. Quis fazer um doutoramento nessa área, e fiz, mas em plantas, porque sempre quis saber como é que a verdura funciona e o que é que o mundo verde tem para nos oferecer.
Depois do doutoramento, regressei aos Açores e comecei a trabalhar com ananás, não tanto na parte de biologia molecular, mas na área da fisiologia, para entender por que é que o nosso ananás era diferente do brasileiro. Pelo meio, tirei um MBA e, a dada altura do percurso, decidi que queria criar o meu próprio projeto, focando-me nos ingredientes dos Açores.
Só despertei para a cosmética na minha segunda gravidez. Na primeira, despertei para a criatividade, com o croché, que era uma coisa impensável para mim. Eu achava mesmo que, enquanto cientista, não era capaz de criar nada. Dois anos mais tarde, engravidei novamente e decidi aplicar o know-how que já tinha a algo novo. Primeiro, comecei a fazer sabões e alguns cremes de uso próprio... Em 2017, candidatei-me a fundos europeus para criar uma fábrica e montei um laboratório nos Açores, num polo industrial, com capacidade para quatro pessoas; é um laboratório de formulação que trabalha com marcas no desenvolvimento de produtos. Neste momento, estamos a trabalhar exclusivamente com a Bam and Boo.

"Só despertei para a cosmética na minha segunda gravidez"
A Bam and Boo é que foi ter consigo, então.

Sim, mas foi um acidente! O Francisco e o Fernando, fundadores da Bam and Boo, foram pedir informações sobre as algas dos Açores, com as quais queriam trabalhar e uma pessoa disse-lhes que eu fazia cosmética e que tinha andado a colher as ditas algas porque também tinha interesse nelas.

O universo da beleza é feito de aromas, texturas, sensações... Sensorialidade e sustentabilidade são compatíveis?

Não sei se o problema é a sustentabilidade; acho que tem mais a ver com a integralidade e a naturalidade dos ingredientes. E, já agora, para desmistificar, natural e químico não são antagónicos – tudo o que é natural é químico.
Na Bam and Boo, estamos a trabalhar um conceito novo, que gosto de chamar de ‘cosmética integral’, uma vez que trabalhamos o ingrediente no seu todo. Eu uso os óleos essenciais na íntegra e não óleos refinados. Tenho de conhecer o que está lá dentro, como é óbvio, e perceber como é que as coisas se vão conjugar, mas trabalho o seu todo. A dificuldade é que, se quero mudar a textura, se quero um acabamento mais suave, mais aveludado, tenho, muitas vezes, de a enriquecer com algumas das moléculas na proporção certa. Não é que elas não estejam presentes originalmente nesses óleos, mas tenho de confirmar se os procedimentos de extração e de refinaria estão em conformidade, se o ingrediente continua a ser sustentável e a ter alguma utilização. Aqui, o desafio é usarmos os ingredientes disponíveis, preferencialmente de produção local, e aproveitarmos os excedentes da produção.

A Bam and Boo começou devagar, com escovas de dentes, alguns cuidados sólidos, e hoje tem um grande portefólio de produtos. Para alguém ligado à ciência, como é ver crescer uma marca e a possibilidade de desenvolver novas fórmulas? Um desafio agradável ou um teste penoso?

É um desafio agradável porque a equipa partilha toda dos mesmos valores. Quando cheguei à Bam and Boo, houve um match, uma cena ‘à programa de televisão’! Dou-me muito bem com o Fernando e o Francisco, porque falamos mais ou menos a mesma linguagem. Claro que é um trabalho exigente e que cada um tenta puxar a brasa à sua sardinha, mas eu sou teimosa, sou uma mulher de ciência. Às vezes, dou por mim a pensar na melhor forma de comunicar ou explicar as minhas ideias e as minhas limitações. Porque muito daquilo que eles sonham nem sempre se consegue concretizar... Como é que lhes explico, outra vez, que o óleo e a água não se misturam?! No final do dia, todos queremos trabalhar os ingredientes e a sustentabilidade de uma forma muito presente, com consciência do que estamos a selecionar e a expor no produto final.

Três dicas infalíveis de uma cientista para ensinar o consumidor a escapar ao greenwashing:

  1. Olhar para o rótulo e tudo o que tiver um ar natural legível, com um nome em latim, tipo Prunus armeniaca (alperce), Corylus avellana (avelã) ou Rosa canina (rosa-mosqueta)… isso é tudo ok.
  2. Em cosmética, menos é mais. Portanto, quando olhar para uma lista e vir 50 ingredientes, esqueça. Um creme só precisa de 10 para cumprir a sua função. Temos um princípio ativo, um agente oleoso, um agente líquido, pomos mais uns para nutrir, se calhar pomos um antioxidante, temos de ter um conservante… Sei lá, fazia um creme com 5 ingredientes; não preciso de 50.
  3. Cuidado com a informação errada que anda por aí a circular, sobretudo acerca dos óleos essenciais. Químico não é mau. E nem tudo o que é natural é bom…
Como é que se garante a estabilidade de um cosmético natural?

É para isso que existem os ensaios de estabilidade e de segurança microbiológica; todo o produto cosmético que chega ao mercado tem de passar por essa etapa. De qualquer forma, queremos sempre ter o feedback dos nossos clientes porque há coisas que, às vezes, nos ultrapassam, apesar de se terem feito todos os ensaios.
O bom é que conseguimos voltar atrás e reformular os produtos rapidamente. Temos é de trabalhar com ingredientes de qualidade e com o máximo de certificação de shelf life. E não há cá essa coisa de não usar conservantes. Os conservantes existem para ser usados e existem conservantes que devem ser usados... Os parabenos não são todos proibidos. Há conservantes que podem ser usados porque estão regulamentados e porque são realmente os mais eficazes em produtos com muita água.
Depois, depende também do micro-organismo que se quer controlar... A matéria-prima é mutável: este ano posso comprar 50 litros de óleo de jojoba e, para o ano, outros 50 litros ao mesmo fornecedor, mas a jojoba já não é igual. O mesmo acontece com o azeite, com a vinha... É normal, são produtos naturais que estão sujeitos às intempéries e a variações das práticas agrícolas. Por isso é que temos de nos defender e fazer sempre estes estudos.

Bam and Boo
Bam and Boo Três dos produtos best-sellers da Bam and Boo: o Radiant Day Cream; o Activating Serum e o favorito de Violante Medeiros, o Hyaluronic Acid Serum.
Quantas pessoas trabalham consigo no laboratório?

Duas. E conseguimos criar um creme muito depressa. O mais rápido foi num mês, mas sem esquecer que eu já tinha sete anos de experiência laboratorial em cosmética e 25 de experiência laboratorial no geral. Não surge do nada, é aquela coisa do standing on the shoulders of giants – a pessoa já fez um percurso, agora é só um passinho.

Atualmente, os consumidores querem saber de onde vêm os ingredientes e como os produtos são feitos. Como é que garantem transparência na cadeia de produção?

Na parte da produção, temos os registos e as fichas técnicas de todos os produtos. Além disso, tentamos trabalhar sempre com os mesmos fornecedores – temos distribuidores portugueses, mas também alemães, espanhóis e franceses – e perceber a proveniência dos ingredientes.

Ainda sobre sustentabilidade, as plantas e ingredientes naturais usados na cosmética são finitos...

Os bens são finitos, exato. Aqui, tudo o que usamos da floresta – floresta sustentável, aliás – tem uma certificação de replantar e de reflorestar. Acho que temos de aproveitar os resíduos. A maior parte dos óleos que usamos são aproveitados de excedentes da indústria madeireira – depois de se cortarem árvores, aproveitamos as ramadas pequeninas, que não servem para rigorosamente nada, nem para compostar, para fazer a extração dos óleos essenciais. E, assim, ficamos com um resíduo reduzido a zero, mas extraindo um produto de grande valor. E eu acho que a estratégia tem de ser essa, especialmente em regiões pequenas, como os Açores.

Qual o seu ingrediente açoriano preferido?

O chá verde. Tento pôr chá em tudo! O chá verde é orgânico e super calmante. Podíamos todos lavar a cabeça com água de chá verde porque acalma o couro cabeludo, acalma a pele sensível... Acaba por ser um ingrediente versátil, posso adequá-lo a fórmulas diferentes, variando a concentração. Também gosto de aloé vera pela sua versatilidade e de óleos vegetais no geral – a verdadeira nutrição está nos óleos.

As fórmulas com ingredientes promotores de bem-estar são uma grande tendência de beleza. A Bam and Boo está preparada para enfrentar esta mudança?

Ah, sim! Os neurocosméticos estão na moda. E, sim, estamos preparados; já tenho dois ingredientes selecionados. Um deles quero usar há vários anos porque é extraído de um fruto que também existe nos Açores. Mas não pode ser trabalhado diretamente na ilha, precisa de ser estabilizado e de ter um tempo de prateleira mais longo para servir ao produto que idealizei. Nos últimos anos, começaram a fazer estudos sobre este fruto e agora está identificado como um neurocosmético. Portanto, promove o bem-estar, a sensação de calma, reduz os níveis de stress...
Falámos, enquanto equipa, sobre o assunto porque não podemos fazer alegações nenhumas. A legislação dos cosméticos, a nível europeu e em Portugal, é muito direta, clara e transparente: um cosmético é um produto para aplicar na pele, para melhorar o seu aspeto, cheiro, textura... não é para tratar, isso já é um produto farmacêutico. Ou seja, não podemos, de maneira nenhuma, lançar um creme e dizer que a pessoa se vai sentir melhor ou menos deprimida. Podemos é usá-lo como ferramenta. Porquê? Porque, se a pessoa se sentir efetivamente melhor, vai querer comprar mais, vai fidelizar-se à marca.
Pelo que percebi este ano em várias feiras que visitei, como a In-Cosmetics, em Paris, as marcas querem usar este tipo de ingredientes porque ajudam a fidelizar o consumidor e fazem-no ter vontade de comprar mais. Estão até a promover estudos que o comprovam. Normalmente, são inquéritos psicológicos que avaliam se a pessoa se sentiu melhor, menos stressada, se usar o produto aliviou a sua resposta a conflitos interpessoais... Se a pessoa tiver práticas meditativas, se ajudou a induzir e a acalmar, se complementou a sua rotina já estabelecida de bem-estar. É muito engraçado este mundo dos neurocosméticos.

Qual é a sensação de desenvolver produtos apreciados pelos consumidores?

É ter logo feedback, é saltar do mundinho que eu tinha à minha volta e começar a ter resposta. Já fui abordada na rua, aliás, aqui em Lisboa! Sou uma pessoa muito comunicativa, não tenho papas na língua, não tenho problemas em comunicar, dar aulas, fazer workshops... Fez sempre parte do meu percurso e é uma coisa que gosto de fazer, mas estar debaixo dos holofotes, aparecer em fotografias, ver vídeos em que sou a protagonista e estou lá sozinha tem outro sabor.

Que mensagem gostaria de deixar aos consumidores sobre o trabalho científico e de pesquisa que há por trás de cada produto?

Acima de tudo, informem-se e sejam exigentes. Utilizem produtos de marcas que comuniquem o que oferecem, que expliquem o porquê dos ingredientes, o porquê daquela textura, o porquê daquele produto... O marketing, às vezes, ofusca um bocadinho o produto que temos à frente.
Há alturas em que o marketing se quer sobrepor à ciência, e eu aí deito as mãos à cabeça e digo: isto não pode sair assim, quero que as consumidoras se sintam seguras comigo! A velocidade a que o marketing quer avançar, às vezes, não é a velocidade a que nós, cientistas, podemos ir.

Qual o seu produto preferido?

Da Bam and Boo, é o sérum de ácido hialurónico.

A marca Bam and Boo pode ser comprada online e na sua loja no LX Factory, em Lisboa. 

Madalena Alçada Baptista foi jornalista durante vinte anos, muitos deles dedicados à área da beleza. A sua personalidade curiosa e formação em jornalismo de investigação levaram-na a entrevistar perfumistas, cientistas, marketeers e fundadores de marcas que amamos, e é isso que faz mensalmente na Miranda, em #BeautyInsider.