Ao longo dos séculos, o cabelo sempre teve um forte peso na forma como a mulher é percecionada e vista. Ainda hoje, o cabelo encontra a sua liberdade máxima – nas sociedades democratas e liberais – para ser e assumir-se como cada uma pretende usá-lo, curto ou comprido, liso ou encaracolado, pintado de rosa ou em nuances cor de mel, o cabelo continua a ser um dos expoentes máximos de feminilidade, sensualidade e um indicador de saúde, beleza e jovialidade.

Ao longo da História, o cabelo teve odes e poetas a enaltecê-lo e a cantá-lo, faz parte de canções e de poemas, característica marcante de atrizes ou de modelos, e foi pintado, fotografado e retratado como figura principal em milhares de quadros, livros, anúncios ou filmes.

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O cabelo, essa textura que tem poderes mágicos e que enfeitiça homens e mulheres, capaz de seduzir e de levar à perdição, é, também ele, o catalisador de um dos momentos mais fraturantes da atualidade, com milhares de mulheres iranianas a saírem à rua, em protesto contra a polícia do regime e da moralidade, num grito de revolta contra o uso do hijab, o lenço que as oprime e lhes esconde os cabelos – sejam eles curtos ou compridos, lisos ou encaracolados – que vivem tapados dos olhares alheios.

Este ato libertador e que, para nós, mulheres ocidentais, habituadas a ter e a fazer com os nossos cabelos o que bem entendemos e cuja situação atual parece impossível de ser real, a verdade é que o cabelo, esta forma máxima de feminilidade, continua, em pleno século XXI, a ser percecionado como um elemento desestabilizador, castigador e capaz de incitar à discórdia.

Estamos longe de imaginar que numa simples ida ao cabeleireiro, em que decidimos cortar os cabelos compridos, este gesto tão simples e acessível, que consideramos tão mundano e banal mas que nos eleva a auto-estima, seja algo utilizado como forma de protesto noutra parte do mundo. Mas a realidade é que, neste preciso momento, enquanto lê este texto, é isso que acontece: o tal cabelo comprido, cheio de sensualidade, retrato secular da representação feminina ao longo dos tempos e um dos seus elementos definidores, está a ser o símbolo do protesto, num corte drástico – de cabelos e pago, em muitos casos, com o preço da própria vida – pela luta de direitos e contra a opressão.

O direito de todas exibirmos um cabelo que é, por si só, um espelho daquilo que nos define, seja ele curto ou comprido, mas livre. Seja aqui, em Portugal, seja no Irão.

Há vários exemplos de como o corte do cabelo da mulher foi um elemento importante e fraturante para a sua perceção de luta, de voz, de vontade e de poder, exemplos que se manifestam até aos dias de hoje. A mulher que luta pelos seus direitos e que se priva dos seus longos cabelos compridos para ser ouvida. A mulher que corta os seus cabelos para reforçar a sua imagem de poder, como fez Isabel I, que cortou o seu longo cabelo ruivo quando espoletou a guerra entre Inglaterra e Espanha – 1585-1604 – reforçando a sua autoridade e respeito pelos seus pares, afastando a imagem de beleza ou de sensualidade que poderia diminuir a sua mensagem e força política; ou Joana d’Arc, que cortou o seu cabelo para poder combater.

Até aos dias de hoje, o ato de cortar o cabelo continua a ser percecionado como corajoso. A decisão de cortar drasticamente o cabelo não só tem uma mensagem inerente – de alguém que tem força, que é destemida – como passa, em última instância, uma imagem de poder. Não é por isso de estranhar que a maioria das mulheres com cargos de poder político na História, tenham, de uma maneira geral, o cabelo curto.

Não foi esse o motivo que me levou a dar uma valente tesourada ao cabelo na semana passada. Pessoalmente, gosto e identifico-me muito com os cabelos mais curtos e não sei se teria a força e a coragem de, no caso de os ter bonitos e longos, lhes dar uma valente tesourada como forma de protesto, como mensagem de força e de luta, como milhares de mulheres iranianas estão a fazer.

Não nos esqueçamos do caso de Sansão, com os seus longos cabelos compridos: ao cortá-los, Dalila retirou-lhe a força, mas aqui é precisamente o contrário. Cada um luta com as armas que tem e o cabelo, esse fio tão fino em espessura quanto forte em mensagem, tem mais poder do que aquele que, à primeira vista, fazemos dele.

Da próxima vez que for ao cabeleireiro, lembre-se disso.

Mafalda Santos  fez das palavras profissão, tendo passado pelo jornalismo, assessoria de imprensa, marketing e media relations. Acredita em quebrar tabus e na educação para a diferença, temas que aborda duas vezes por mês, na Miranda, em #ÀFlorDaPele.