Senta-se numa cadeira, reclina-se para trás, de boné na cabeça e sorriso com um misto de cansaço e dever cumprido. É o último dia de Portugal Fashion e Vasco Freitas pode finalmente parar um segundo. Entre pentear Sara Sampaio para o mais recente anúncio publicitário, preparar Cate Blanchett para uma passadeira vermelha, ou criar looks para o próximo desfile na Alfândega do Porto, fica difícil acompanhar o ritmo do hairstylist português.
Onde é que nasceu e quando?
Eu nasci em Sebolido, que é uma terra perto de Entre-os-Rios, que fica no Douro, em 1983. O meu pai até tinha uma barbearia em casa, mas eu nunca me virei para os cabelos.
Porquê?
Porque eu venho do futebol. Eu jogava futebol quase profissional, nas camadas jovens, treinava todos os dias, jogava ao fim-de-semana, e, na altura, há 19 anos, um cabeleireiro na aldeia ainda era visto como "não sabias fazer mais nada... ias fazer isso". E por isso é que eu pus essa "arte" do meu pai de lado, nem quis saber. Mas depois tive a sorte de ter amigos mais velhos que começaram a ir à tropa, e eu tinha a máquina do meu pai de cortar cabelo... E era a galhofa à noite. Podia fazer coisas freaks porque, no final, era para rapar porque eles iam para a tropa.
Foi aí o início de tudo?
Sim, mas depois tinha o meu pai a dizer-me para tirar um curso superior, para me formar e só depois aprender a arte. E eu dizia-lhe "estás louco, eu quero é começar já". E com 15 anos comecei. Mas também tive uma sorte gigante porque fui muito bem acolhido, pela minha escola e pela minha formação, que foi na Isabel Queiroz do Vale, aqui no Porto. Trataram-me sempre muito bem e [a Isabel] é uma senhora pela qual eu tenho muito respeito. Ela foi mesmo a minha escola, responsável a minha formação, e a minha educação enquanto ser humano e profissional. Sempre me elevou a fasquia e me obrigou a pensar em grande. Sempre me obrigou a olhar para a Europa, e não só para um país e para uma cidade. Sempre me obrigou a dizer que temos de viajar, de aprender, de consumir. E eu nunca me vou cansar de agradecer à Isabel Queiroz do Vale e ao Miguel Viana com quem vim a trabalhar à posteriori. Foram duas pessoas que me formaram muito enquanto profissional.
Quando se refere à escola, refere-se não a uma formação clássica, mas ao trabalho de salão.
Sim, era uma escola no salão. Eu gostei muito da minha formação porque o tipo de formação que a Isabel Queiroz de Vale implantou na altura em Portugal era o de termos formação enquanto eramos ajudantes dos cabeleireiros. A partir do momento em que estás a segurar nos secadores e a arrumar as toalhas... Estás a ver. Estás na acção. Percebes a conversa que se tem com uma cliente, percebes como abordas, como começas. Eu vindo do lado do futebol, a primeira vez que me deram uma escova para a mão demorei horas e quase torcia o pulso. Aquilo para mim não fazia sentido. Imagina um gajo cromo da aldeia a quem dão uma escova e um secador para a mão. Nunca tinha penteado na vida. O meu pai rapava-me o cabelo.
"Eu vindo do lado do futebol, a primeira vez que me deram uma escova para a mão demorei horas e quase torcia o pulso. Aquilo para mim não fazia sentido".
E como é que chega à Moda?
É uma história caricata. Eu comecei na Isabel Queiroz do Vale, e há muitos anos a informação que nos chegava era que ser cabeleireiro e trabalhar para uma marca como a L'Oréal e fazer os shows de cabeleireiro era o topo. Eu achava que isso era o pico da pirâmide. Eu consumia cassetes de vídeo de shows de cabeleireiro. Pedia à Isabel para me emprestar, levava para casa, gravava e devolvia, aquelas coisas que ela ia a Paris e comprava, as tendências... Eu devorava aquilo. Eram os meus livros. Isso e as revistas de Moda.
Mas nunca quis apenas o lado mais comercial, a Moda esteve sempre presente.
Sim, porque tive a sorte de ter uns pais maravilhosos que, apesar de não ter crescido na riqueza, nunca me privaram de fazer nada, nem nunca me condicionaram nada, aquilo que eu quisesse ser na vida, eu seria. E isso foi uma liberdade muito boa. Nunca ouvi um "não" ou um "és louco". Só um "tens de arriscar, tens de conhecer". E tive a sorte de com 18 anos ser director criativo da Wella, em Portugal. Mas não estava a ganhar borboletas na barriga, ia para cima do palco [nos shows profissionais] e não me identificava, porque aquilo era para mostrar a cabeleireiros e depois não tinha saída nenhuma. E eu queria fazer parte de algo. Até que houve uma vez uma cliente que eu estou a pentear no salão que, de repente, me diz: "olha, tenho convites para o Portugal Fashion, não queres ir? Eu não vou". E eu disse-lhe: "claro que sim, eu vou".
Enquanto convidado?
Sim, convidado da plateia, nem sitting tinha. Lembro-me perfeitamente que foi o primeiro desfile do Felipe Oliveira Baptista em Portugal. Eu vi o desfile dele, e a seguir o do Vieira [Miguel Vieira, designer]. Quem abriu o Vieira foi a Fiona [modelo], nunca mais me esqueço dessa imagem, que era a pessoa que mais bem andava em passerelle, eu acho. E eu lembro-me que desde o momento em que entram as primeiras manequins no desfile, as lágrimas começam-me a escorrer pela cara abaixo. Mas juro-te pela saúde da minha afilhada, senti-me "esta é a minha praia, é ali que eu quero estar". E passado meio ano estava lá. Ainda hoje digo a toda a gente que isto é a minha piscina, é onde eu acho que sei nadar.
"Lembro-me que desde o momento em que entram as primeiras manequins no desfile, as lágrimas começam-me a escorrer pela cara abaixo."
A ascensão na carreira tornou a ligação com as marcas inevitável?
Sim, hoje tenho a sorte de estar com o grupo L'Oréal, de estar com as marcas todas, anualmente estudamos projectos de impulsionamento de marcas, impulsionamento de produtos. E é um projecto que também estou a fazer com a direcção da L'Oréal Portugal e em conjunto com a L'Oréal francesa. Ainda anteontem vim de fazer a campanha nova da Armani de makeup e a do perfume, o Sì. E são projectos que me estão a alegrar um bocadinho e que me estão a pôr um bocadinho no topo do mundo. É um sonho tornado realidade. Agora sim, eu tenho noção que este é o topo da pirâmide.
"É um sonho tornado realidade. Agora sim, eu tenho noção que este é o topo da pirâmide."
O Vasco parece ser um homem do mundo. Como é que toma a decisão de abrir um salão?
Só tenho salão há três anos. Eu sempre quis ser vadio (risos). Mas eu gosto mesmo de atender clientes de salão, sabes? Adoro. Porque adoro fazê-las sonhar. E é o real. Isto [aponta para os bastidores do Portugal Fashion] é o sonho. Lá é o real. Lá ela [a cliente] sai à rua assim.
E fica assim até voltar.
Sim, e é giro porque eu tenho um grupo de clientes que me ensinam muito. E foi muito bom evoluir com elas. Elas iam a Paris e diziam-me "olha, vi lá uma assim..." e eu ficava "fogo, eu também te quero surpreender assim". E foi aí que começou. O meu primeiro subsídio de férias foi para ir a Paris ver um show. Mas eu sempre gostei de ser freelancer, sempre gostei de fazer o meu trabalho. mas depois o meu gosto por atender clientes e a minha carteira de clientes tornou-se tão grande no Porto que eu já não me via a trabalhar em lado nenhum que não fosse um lado que fosse... mundial.
"O meu primeiro subsídio de férias foi para ir a Paris ver um show."
Foi isso que quis espelhar no salão? Mundo?
Sim, o que eu sempre trabalhei com o meu arquiteto foi a ideia de que o meu salão tem de ser bonito em Portugal, mas se fosse em Nova Iorque também. E foi nessa perspectiva. Não montei uma coisa para o bairro, para o local. Montei numa perspetiva para a Europa, mais global. E depois o facto de ter a minha própria equipa. Achei que era o momento para construir isso. Porque não quero bater contra a minha concorrência, adoro a minha concorrência. São pessoas pelas quais tenho uma admiração tremenda. Mas gosto de ter o meu núcleo e os meus profissionais que fazem a mesma linguagem e que trabalhamos na mesma direção.
E é fácil encontrar pessoas e sentir que está lá a mesma linguagem?
Há uma coisa que aprendi desde o momento em que abri um salão que é: uma equipa de cabeleireiros é como uma equipa de futebol. O guarda-redes não faz golos, mas é preciso. E é essa perspectiva que nós temos de ter. Tenho profissionais na minha equipa que no momento em que entraram lá vinham da escola e percebi que, por exemplo, uma não tinha jeito nenhum para a Moda, mas tinha uma tremenda vocação para o salão. E é estes bocadinhos de cada um que fazem o bolo. Agora, não te vou dizer que nunca errei. Já, já fiz tentativas com pessoas e que depois correu menos bem. Mas são visões de mercado. Há pessoas que adoram fazer azuis, vermelhos, cajus, e eu pessoalmente gosto mais de naturais, gosto que a cliente se arranje em casa, não gosto de ser eu a arranjá-la. E são esses pequenos detalhes que eu quero ter no meu núcleo. Mas depois acho que as mulheres devem fazer o que quiserem. Eu próprio não me importo que vão a outros salões. Quero lá saber. Eu como cliente também ia experimentar outras coisas. Why not?
Tem um salão no Porto. Seria impensável ter um em Lisboa?
Quero ter. Ainda não tenho. Houve aí uma aproximação à pista, mas quero muito ir para Lisboa.
Já há alguma data em mente?
Gostava que fosse já para o ano. Mas gostava de ter um conceito diferente. Também por respeito aos meus colegas que lá estão e muito bem, e não quero de todo fazer qualquer tipo de concorrência, até porque eu posso ir para Lisboa só atender as minhas clientes que vêm ao Porto e continuo com a agenda cheia (risos). Mas queria fazer algo muito pessoal, muito de identidade, de tratar a mulher do início ao fim com um conselho, em que direcionamos o dia-a-dia da pessoa, damos-lhe o tutorial para se arranjar, os acessórios, os kits, passamos-lhe a informação toda. E era isso que eu queria muito ter. Porque eu vou ser sincero, eu não gosto de ter clientes semanais, clientes de pentear e secar. Eu gosto que elas se produzam. Que percam tempo com elas próprias, que gostem de ser bonitas. As mulheres são a Beleza, na minha opinião.
"Vou ser sincero, eu não gosto de ter clientes semanais, clientes de pentear e secar."
Há algum hairstylist que tenha como referência?
Sim, tenho. O meu tutor e a pessoa que vai ser sempre a minha referência, já lho disse, é uma pessoa que hoje em dia deixou de ser cabeleireiro, é um dos maiores fotógrafos do mundo actualmente, é o Luigi Murenu. É um ser humano que tem uma forma muito única de ver a Beleza e que nunca se vende ao comercial. É aquilo que eu defendo para as mulheres: não há um dia em que desistimos de nós próprios. Da mesma forma que não há um cabelo que seja só molhar e deixar secar. Ele dava a essência, a beleza, puxava o pormenor mais simples que deixava a mulher sentir-se o mais bonita possível. (...) E o Luigi ensinou-me outra coisa que é: se nós viemos é para fazer o melhor. O mais ou menos não é para mim. Não é mesmo.
O mais ou menos não é para mim. Não é mesmo.
Já falámos muito de de mulheres. Há alguma mulher que gostasse particularmente de pentear?
Uma das que eu gostava muito de pentear já penteei, que era a Cate Blanchett. Depois, a Tilda Swinton. Há um filme dela do Paolo Sorrentino [realizador] que eu aconselho a toda a gente que gosta de Moda, que é o Io sono l'amore (2009), em que o guarda-roupa é todo Jil Sander, e que tem uma direcção de fotografia única, única, única. E a Tilda como minha musa... Inspira-me muito. Aquele masculin feminin, a mistura dos dois, o poder dos dois, a mulher ficar com o poder do homem é uma coisa que eu adoro.
Há algum momento da carreira que tenha sido particularmente marcante?
Foi há meio ano, onde estão todos os fotógrafos aos berros a atropelarem-se em Veneza na passadeira vermelha. Foi no centro de congressos e eu estava a pentear a Cate Blanchett, que chega, depois da apresentação do filme, e a seguir era a red carpet. Resumidamente, fiz-lhe uma onda ao lado, muito sexy, vintage e muito cinematográfica. Mas juro-te, por tudo, tive cinco minutos para fazer aquilo. E para ela se vestir ao mesmo tempo e para retocar a makeup. E ela não queria arriscar. E eu disse "Please, Cate, let's do it, that's the perfect match for your dress". E ela confiou em mim. E eu quis assumir o risco. A Cate Blanchett era a pessoa mais fotografada nos festivais. E foi muito giro depois ir à varanda e ver aquele pessoal todo a pular o gradeamento de segurança para fotografar a Cate. Com o meu cabelo. Foi algo que nunca vou esquecer.
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