Estudou Belas Artes e Comunicação, em Nova Iorque, mas é, sobretudo, da Moda que faz o seu percurso profissional. Em 2006, David Motta começou a trabalhar na Vogue americana, ao mesmo tempo que fazia consultoria em Relações Públicas para nomes como Balenciaga, Narcizo Rodriguez ou Proenza Schouler.
Hoje, já fez trabalhos como diretor artístico, curador, produtor em projetos de arte, designer de figurinos e, claro, stylist. E já colaborou com edições como Vogue, Elle, Harper's Bazaar ou Paper Magazine. Já dissemos que fez parte da equipa por trás do ensaio de Madonna para a Vogue Itália, fotografada em Portugal? Pois é. Mas o que todos têm em comum? A Beleza. Seja qual for a sua forma, ela está presente. Está também muito presente na sua vida pessoal, com as memórias que tem da avó e da mãe, e das suas rotinas de cuidados de rosto e idas ao salão.
O David é stylist e está envolvido em inúmeros projetos no mundo da Moda. O que é que um projeto tem de ter para o fazer querer trabalhar nele?
Muito potencial (risos). Mas, acima de tudo, são as histórias, a narrativa existente – ou não – que me cativam. No caso de não existir ou estar assente em pilares menos sólidos, adoro chegar e inventar, e depois, claro, contar uma boa história. Personalidade também, interesso-me, inspiro-me e fascino-me imenso com a variedade, mundos inteiros por explorar sem ter de apanhar aviões. O retrato pictórico é o meu género de pintura favorito. Ah! E muito, muito importante: uma boa equipa. Não se faz nada bem sozinho. Fomos criados ou inventados para funcionar uns com os outros, e eu não era nada, nem ninguém, nem muito menos teria feito alguma coisa, sem a ajuda, apoio ou colaboração de gente maravilhosa com quem vou tropeçando na vida.
Nos seus projetos, a Beleza é uma peça fundamental. Como é interligá-la com a Moda? E como podem ambas ser as estrelas num shooting?
Vital. A cara é o nosso cartão de visita... a pele, os dentes, o cabelo só por si, já podem contar inúmeras histórias. É o primeiro impacto, pelo menos é no que reparo primeiro. E, portanto, num trabalho muitas vezes começo por aí. A interligação com a Moda, na minha perspectiva – e não como indústria, mas como processo criativo – podia ser ainda mais privilegiada. Há muitos profissionais e revistas obcecados só com roupa, vender a roupa, mostrar a roupa, falar da roupa. De que é que vale uma roupa maravilhosa sem uma pele que a transporte para algum lado? A ilusão ou a reação que uma imagem de Moda deve criar, se não tiver harmonia entre todas as partes envolvidas, desde a luz à manequim, não serve para nada. No meu processo é essencial. A estrela de um shooting, e se calhar vou repetir-me, é tal e qual como no céu: são muitas. A Beleza ocupa, de facto, uma parcela muito maior que outros elementos. Por vezes brilha como uma estrela cadente, noutras está lá mas não a conseguimos ver.
E falando do David, quais os cuidados que tem com a pele e a qual a importância para si?
Eu?! Todos e mais alguns. Estou há duas semanas sem apanhar um raio de sol porque fiz um laser maravilhoso na Avenue Clinic. Cresci com uma avó que era doente cardíaca e tinha sempre dois nécessaires com ela. Sem os remédios, o coração deixava de funcionar, mas ela abria sempre primeiro o da maquilhagem. Só depois é que tratava do resto e acredito que isso tenha tido impacto e influência em mim. O que tenho de comunicativo agora, tive de introspectivo em criança. Ia com a minha mãe a todo o lado, observava e ouvia os adultos. Ela sempre se preocupou e cuidou, passei horas em cabeleireiros, spas e perfumarias. Horas a vê-la maquilhar-se e, claro, nem uma, nem outra, se deitava ou fazia o que quer que seja sem limpar a pele, tonificar e hidratar.
Uma coisa que desenvolvi ou aprendi à minha custa foi o cuidado com o sol. Inverno, primavera, verão ou outono, sempre proteção solar máxima. É talvez o meu maior segredo de Beleza. Claro que beber muita água e alimentarmo-nos bem é fulcral. Mas, por exemplo, sofro de insónia crónica e stress pós-traumático, então morro de medo que pela falta de sono e descanso, a pele não se regenere, logo faço tudo o que há para fazer: peelings, lasers, micro-agulhamentos, ácidos hialurónicos e por aí fora. E por vaidade, claro... A pele não é um órgão de absorção, é um órgão de defesa e purga, por isso não sou freak dos cremes. Embora, claro, sejam importantes para a textura e hidratação, mas para mim não há nada como chegar às camadas mais profundas e carenciadas da pele. Não me maquilho durante o dia, a não ser que tenha alguma ocasião especial.
Não tenho papos nem olheiras, se calhar porque com 10 anos já ia aos La Prairie's e Sisley's de olhos da minha mãe. Apareciam umas dedadas enormes e a culpa era sempre das empregadas (risos). Também uso sempre óculos escuros e tenho um segredo de Beleza que custa 3 euros e se chama Ketrel.
E quais são os seus tratamentos de estética preferidos? E qual aconselharia, caso de só se poder fazer um. Já agora, fale-me desse Ketrel.
Se alguém só pudesse fazer um, teria de começar pela mãe dos facials, que é uma boa limpeza de pele!
Eu não consigo eleger preferidos em quase nada na vida, porque sou muito curioso e interessado e está sempre tudo a mudar e a evoluir – felizmente – de maneira que o preferido de hoje não vai ser o mesmo de amanhã.
O Ketrel é tretinoína (ou ácido retinóico), usada para tratar afeções cutâneas, acne, rosácea... E, por isso, trocando por miúdos, é como que uma esfoliação overnight. Uma ervilha (ou duas) noite sim, noite não, preferencialmente só no inverno, evitar excesso nos cantos do nariz e boca, nunca nos olhos, mas mãos, pescoço, estrias, rabiosque, ponho Ketrel em todo o lado. Mas atenção que deve ser aconselhado e receitado por um dermatologista.
Tal como a roupa e acessórios, a maquilhagem também diz muito sobre a pessoa. Para o David é uma forma de se expressar?
É uma forma de me proteger, de enaltecer o que tenho de melhor na cara e de celebrar uma ocasião especial. De maneira que, como disse acima, passam semanas sem me maquilhar. Quando digo proteger, não falo de esconder nada. Mas como uma segunda pele, uma máscara social. Até o peso das pestanas me protege de olhares menos simpáticos ou mais tóxicos. Nos séculos XVII e XVIII, para além do leque tinham códigos através de determinadas expressões, eu acho que quem me conhece bem consegue ler-me sem eu ter que dizer uma palavra. Não escondo o tédio se for esse o caso, ora maquilhado é como o joker, posso estar radiante e iluminado mas a apanhar uma grande seca.
Mas sim, na maneira como me projecto no ou para o mundo, é maquilhado. Por isso, a resposta é afirmativa, utilizo a maquilhagem como uma forma de expressão. E de ativismo até. Hoje já nem tanto, porque estamos em 2020, mas eu tenho 34 anos e quando saía à noite com 16, ouvi o meu padrasto sussurrar com a minha mãe que talvez não fosse boa ideia o meu irmão crescer a ver-me pôr rímel antes de sair de casa...
Falando de cabelos. O cabelo do David é, sem dúvida, uma das suas imagens de marca. Como foi o processo até chegar ao look que usa atualmente?
Nasci e cresci com um cabelo liso e brilhante, do tom mais escuro que existe. Um castanho muito escuro, que ao sol ficava com reflexos encarnados. No período da puberdade, usava o cabelo à pagem, nem comprido nem curto, com o qual eu estava bastante satisfeito porque servia uma androginia aceite. Ora transformou-se numa juba encaracolada, seca e frisada. Agora não me queixo, porque quase todos os meus amigos da mesma idade estão carecas, mas na altura odiei e não sabia o que fazer com aquilo. Nem eu nem os cabeleireiros. Odiava cortar muito curto, e não cortando parecia o Einstein – mas sem o QI. Tudo o que queria era o oposto do que tinha.
Com 13 anos, queria um cabelo liso e louro, apesar das longas horas no cabeleireiro com a minha mãe. Na altura, o nosso cabeleireiro era o João Chaves, que não deixava que ninguém fosse outra coisa senão louro. Mas aquilo comigo na altura não correu muito bem, porque ficava sempre um arruivado com highlights, e nunca achei bonito ou elegante. Aos 18 anos conformei-me com um cabelo curto e com a minha cor natural, até bastante bonita porque encontrei um balanço no corte. A loucura deu-se quando me mudei para Londres em 2008/9. Tive o cabelo de todas as cores. Fui o meu próprio cabeleireiro e colorista durante algum tempo, mas aquilo nunca ficava exactamente muito bem, como é lógico.
Mais tarde, numa fase de transição em que o cabelo descolorado sofreu corte químico e o meu natural continuava comprido, vi-me louro e preto. Não fosse a Cruella De Vil ser um dos meus ícones de estilo, aquilo jamais faria sentido. Mas também me passou pela cabeça a noiva de Frankenstein, Countess de Castiglione. Sou acusado de copiar a Daphne Guinness, mas ao contrário. Quando mais tarde a conheci – e com quem depois trabalhei e de quem sou amigo – ela também estava nos seus processos e era loura com umas partes roxas... Não direi que me copiou, mas andámos ali naquele processo juntos, a trocar marcas de champô azul, para o branco ficar mais branco. Com a diferença de que ela é efectivamente loura, de maneira que o meu caminho foi sempre mais difícil. Depois decidi que aquele contraste do yin e do yang já não fazia sentido e queria ser só louro, e fui.
Talvez em 2018, e até março deste ano, voltei para o que dizem ser a cópia da Daphne (risos). Pelos motivos que conhecemos, não fomos ao cabeleireiro durante muito tempo, de maneira que o meu couro cabeludo teve umas tréguas e pensei que o melhor mesmo é deixar crescer. Ainda andei uma fase moreno, mas aquilo não é para mim. E pronto, um, dois, três, cá estou eu louro outra vez. Mas acredito que o bom filho à casa torna, por isso, nem que seja quando tiver o cabelo branco, voltarei ao dual tone, se não cair todo até lá (risos). Porém, há o infindável mundo das perucas. Que já explorei em Londres e agora começo cada vez mais a introduzir por cá. Embora seja ainda um bocado tabu e clichê para muitos.
Um item muito comum lá fora, mas que em Portugal é ainda visto de lado: será que podemos considerar as perucas como uma "peça de roupa" da Beleza? Pela versatilidade, pelas opções infinitas, pela possibilidade de mudar todos os dias...
O mais possível. Pode ser visto como um chapéu! A diversão que é podermos mudar e andar na rua sem que ninguém nos reconheça, por exemplo. Ou ter uma cor, textura e comprimento de cabelo que fique melhor com o que estamos a vestir. Lá está, interligar Beleza com Moda. Todos os bons cabeleireiros com quem já trabalhei pelo mundo fora nunca vão para um trabalho sem perucas. Trabalhei na produção da capa da Vogue Itália com a Madonna, em Portugal, e havia uma mesa de casa de jantar cheia de perucas louras nas devidas cabeças. Ela não usou nem uma.
Porque não foi necessário ou porque a própria Madonna não quis?
Acho que no caso da Madonna a resposta será sempre em função da sua vontade. Dizer que não foi necessário podia ser ofensivo para uma imperatriz, se não fossem necessárias não teriam lá estado (risos). Mais que não seja para agora estarmos aqui a falar delas.
Podemos dizer que os looks de Beleza do David são out of the box. Acredito que em Portugal ainda hajam olhares. Como os interpreta? Contraste em relação a Nova Iorque ou Londres, não?
Pois cada um com as suas boxes. Na verdade, considero-me uma pessoa absolutamente “normal”, com uma vida talvez mais entertaining que a do comum dos mortais, mas que vem com um preço e com escolhas e as suas consequências. Em Portugal, acabei por criar uma bolha (em constante mutação) de pessoas com quem me dou e trabalho, que no fundo não me fazem sentir out of the box, antes pelo contrário, até celebram isso.
Depois, há que admitir que sou muito privilegiado por viver no centro da cidade, não andar de transportes públicos, faz-se assim umas escolhas com um certo jogo de cintura, que acabam por facilitar a vida nesse sentido. Hoje em dia, é engraçado quando olham, porque olham mais no sentido de uma senhora “muito excêntrica”. O que acaba por ser menos “agressivo” do ponto de vista do “agressor”. Entro num Uber e dizem que "é engano, minha senhora, este é para o David". Na triagem do hospital, sento-me e dizem que "é engano, minha senhora, chamámos David". Eu, com todo o respeito pelas questões de identidade de género, que considero um grande guarda-chuva, e onde eu também estarei algures debaixo, “des”protegido, acho muita graça e não me incomoda. Muitas vezes nem corrijo. Desde que me tratem com respeito, senhora ou senhor, é indiferente. Mas David é sempre melhor.
A grande diferença entre Nova Iorque ou Londres e Portugal, é a escala e a noção de tempo. Ambas as cidades têm um ritmo que por cá não existe, logo, as pessoas estão pouco interessadas ou preocupadas se a pessoa do lado tem o cabelo roxo ou as unhas cor-de-laranja. Não sobra tempo para questionar a vida alheia como cá (risos). Nos anos 60, em Londres, já havia punks com cristas e o cabelo de todas as cores, por cá sabemos o que se passava nessa altura. Mas a maior diferença é, logicamente, uma questão de escala. Os americanos – aliás, correção, os nova iorquinos – elogiam, param para perguntar de onde é o casaco e dizer que bem que estamos. Apesar de, para o meu feitio, ser um bocado overwhelming (risos), isso é uma coisa extraordinária face ao que eu ouvi em miúdo por cá.
Uma vez estava cá de férias, passei na Rua de São Paulo e um senhor que estava a lavar as ruas com uma mangueira de alta pressão deu-me uma "lavagem", digamos assim. No dia seguinte, uma senhora correu atrás de mim com uma vassoura porque eu tinha vestido um quimono encarnado e ela dizia que eu estava "possuído por muitos demónios". Somos muito poucos, muito pobres e, infelizmente, muito rurais. Mas estamos no caminho certo ou pelo menos a tentar, quero crer.
Eu não gosto de perpetuar a conversa do bullying, porque felizmente não me considero vítima, apesar de ter sido e ainda ser na realidade vítima de bullying e de alguma descriminação. Não me deixo vitimizar ou afectar por isso. A minha vida continua, e bem mais divertida que a dessas pessoas presas em cabeças muito complicadas. Mas nem toda a gente tem a minha força e capacidade de contornar, é legítimo que magoe e deixe cicatrizes muito complicadas em algumas pessoas. A mim deixou-me uma na testa que, com tanto peeling e laser, praticamente não se vê. Mas isto porque, há 12 anos, uma pessoa conhecida até do meio artístico nacional achou que era boa ideia partir-me uma garrafa de vodka na cabeça “para me cegar”.
Gostava que o que chamam "diferente" fosse mais comum e até celebrado?
Gostava que as pessoas tivessem imaginação, vontade e capacidade de desenvolverem uma identidade própria. Pensar por elas próprias. Somos todos diferentes, mas todos iguais. Não acredito que seja diferente do meu vizinho de cima ou da senhora que me vende as flores. Mas, talvez, por circunstâncias sócio-culturais ou económicas, mas penso que mais pela educação que tive – e digo em casa e não nos colégios católicos em que andei. Mas nunca me castraram, nunca me tentaram formatar. Cresci a saber que havia pessoas que comiam comidas diferentes, que tinham horários diferentes, que tinham cores de pele diferentes da minha. Porque, lá está, somos todos iguais. Mas sendo a única espécie viva com a capacidade de escolha no que pomos em cima, por que não cada um fazer ao seu belo prazer e maneira? Já fomos condicionados durante tanto tempo, agora que é possível, quem queira e goste, que o faça. Há pessoas que têm outras vias de expressão, uma das minhas é esta. E no final de contas sou só uma pessoa a tentar sobreviver em 2020, na esperança de acordar cada dia melhor comigo e com os outros.
Lá está, a importância de uma boa base...
Sim, mas também há casos – e conheço vários – e, infelizmente, a maioria não a teve. Mas conseguiu criar por si próprios(as). A internet foi uma coisa horrenda e maravilhosa que nos aconteceu a todos(as).
A internet veio mudar muitas mentalidades?
Pois claro. Veio dar acesso muito rápido a muita informação que pode ser altamente benéfica. Há cabeças que podem não conseguir editar ou questionar aquilo que lhes está a ser transmitido. Felizmente, tive a sorte de ter um pé no "pré" e outro já no "agora". Quem só conhece esta realidade não faz ideia, porque não tem termo de comparação de quando se pesquisavam coisas num livro ou se tirava uma dúvida num dicionário (físico, digo). As pessoas falavam mais umas com as outras. Agora falamos, mas não acho que seja bem a mesma coisa. Não sou nostálgico, mas acredito que temos mesmo de abrandar. Aliás, agora fomos obrigados. Mas no fundo, nem por isso... Digo isto mas passo horas e resolvo tudo por escrito e pelo telefone. Há dias em que nem me sento ao computador. Sou completamente adicto ao Instagram, como aliás quase toda a gente que conheço, apesar de não assumirem.
Logo, tornou-se um canal que nos dá a possibilidade, confiança e inspiração para sermos como e o que quisermos?
Sim. Mas a validação no espaço físico e no virtual é diferente. Por exemplo, no meu trabalho eu faço imenso “street casting”. Não “na street”, mas hoje em dia no Instagram. E nem falo do físico, porque todos sabemos ver quando as fotografias estão editadas. Mas muitas pessoas têm a confiança e inspiração, como disseste, para serem como são online e, depois, quando as conheces ao vivo... social skills zero, carisma zero. É diferente ser performer para um selfie stick, do que para uma plateia ou uma sala cheia de gente.
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