#ÀFlorDaPele: "mães-amêndoa", terá tido uma ou pior... será uma?

Este artigo tem mais de um ano
Conhecidas como as “mães-amêndoa”, a obsessão com a comida sã e as restrições alimentares a hidratos de carbonos e às quantidades ingeridas, deixam marcas profundas, afetando milhões de adolescentes em todo o mundo.
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Bella e Gigi Hadid, as irmãs modelos mais conhecidas da atualidade, são exemplos de como uma mãe obcecada com a dieta das filhas as transformou em duas referências no mundo da Moda. Mas no lado mais feio e obscuro do caminho, até lá chegar, está uma mãe castradora e controladora do que as filhas comiam, impondo uma relação tóxica com a comida e assente no estigma da "gordofobia".

O vídeo já é antigo. Nele, uma jovem e adolescente Gigi Hadid fala com a sua mãe Yolanda ao telefone – antiga estrela televisiva do programa Real Housewives of Beverly Hills – e conta-lhe que se sente muito débil por apenas ter comido meia amêndoa, ao que a mãe responde: “Come duas e mastiga-as muito bem”.

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Como uma vez na internet, para sempre na internet, este excerto em concreto voltou a viralizar, tornando-se um dos temas de momento no TikTok, onde centenas de raparigas, adolescentes na sua maioria, começaram a falar do que é crescer sob a influência das “mães-amêndoa” e da sua relação com a comida, a pressão tóxica em torno da alimentação, e o estigma da "gordofobia" incutido por uma sociedade obcecada com a magreza. Crianças e jovens que são felicitadas sempre que perdem peso e criticadas sempre que comem hidratos de carbono.

O fenómeno não se ficou apenas pelos testemunhos de jovens e adolescentes, mas também de médicos que aproveitaram a mesma rede social para chamar a atenção para esta realidade, e de como a excessiva preocupação pela saúde e pelo que comem, incutida por um progenitor, pode levar a uma relação doentia e cheia de culpa com a comida.

Uma das mais ativas é a Dra. Karla, pediatra e especialista em obesidade infantil, conhecida no TikTok como @imecommunity, que alerta de forma incessante para mensagens que muitas raparigas cresceram a ouvir e que são uma forma tóxica de projeção dos medos e inseguranças dos progenitores em relação à comida. Frases como “um minuto na boca, uma eternidade nas ancas”, ou “nunca se é suficientemente rica ou magra”, são alguns exemplos.

O perfil das mães-amêndoa parece ser consensual: mulheres da classe média e média-alta, nascidas nos finais dos anos 70 e 80, que foram fortemente impactadas pela cultura de dieta nos anos 90, quando se declarou a guerra à obesidade – em particular nos Estados Unidos. É a década do aparecimento das supermodelos e da epítome de que o sucesso e a felicidade estão aliados a um ideal de peso e beleza. Quem não se lembra da célebre fórmula de medidas ideais de um corpo de modelo, o famoso 86-60-86? Medidas para o busto, cintura e ancas.

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Mães inseguras com os seus corpos, que se autocriticam e impõem – a si mesmas – restrições alimentares, privando-se de comer, admitindo que têm dificuldade em não comentar o seu próprio corpo diante dos seus filhos ou gerir a sua própria relação algo patológica com a comida, passam essa mensagem aos filhos.

Mas o fenómeno “mães-amêndoa”, não é exclusivo apenas da mulher. Também os homens, pais, conseguem ser igualmente inquisitivos e castradores em relação às regras alimentares. Mais uma vez, o fenómeno parece ocorrer em famílias da classe média e média-alta, onde ter filhos magros e elegantes é um símbolo de status e de sucesso, de crianças bem-sucedidas e de pais que sabem levar uma vida regrada e saudável. Pais adeptos de desporto e que incutem a proibição do consumo de hidratos de carbono entre refeições, com receio de criar uma criança gorda.

A jornalista e escritora Virginia Sole-Smith, no seu livro 'Fat Talk', aborda a questão do que é crescer sob o ataque diário de vergonha corporal, ou body shaming, que as crianças e jovens encontram diariamente entre os seus pares, seja em casa com os próprios pais, seja na escola, seja ainda entre amigos, e de como as famílias podem mudar a narrativa em torno do peso, saúde e autovalorização.

O livro, que pode ser adquirido na Amazon – já que não o encontrei à venda em Portugal – defende a recuperação de que o termo "gordura", ou “gordo”, nem sempre é sinónimo de que a criança ou a(o) jovem seja "não saudável", "inativa" ou "preguiçosa". Com vários inquéritos e recolha de dados de investigadores e ativistas, bem como com pais e crianças, Sole-Smith põe a nu a forma como o enfoque americano na resolução da "epidemia de obesidade infantil" perpetuou uma segunda crise de desordem alimentar e de ódio corporal em crianças de todos os tamanhos. Nele, a autora expõe a gordofobia internalizada da nossa sociedade e elucida como e porquê precisamos de parar de "prevenir a obesidade" e começar a apoiar as crianças nos corpos que elas têm.

Quanto às mães-amêndoa, deixo aqui um episódio que eu própria vivenciei, há muitos anos, durante a minha atividade profissional como jornalista. Em pleno início do milénio, encontrava-me a preparar uma edição especial precisamente sobre a temática das dietas. Quando reunida com a direção, onde se encontrava a diretora comercial, uma mulher magérrima, de classe alta, que olhava todos com ar de superioridade e desdém,  fui surpreendida pelo seguinte comentário vindo da mesma: “Dietas… dietas! Quem é que precisa de seguir dietas? Façam como digo às minhas filhas: em Auschwitz não havia gordos!”.

As restantes pessoas que estavam sentadas àquela mesa riram-se – não sei se de nervoso, de concordância ou de choque. Eu fiquei calada, abismada com o que tinha acabado de ouvir, e gravei na memória as palavras daquela mulher e aquele episódio até hoje.

Se isto aconteceu comigo, na altura uma jovem com vinte e poucos anos, imagino aquelas crianças, suas filhas, que tiveram de crescer com uma mãe que compara a gordura a campos de concentração.

Mafalda Santos fez das palavras profissão, tendo passado pelo jornalismo, assessoria de imprensa, marketing e media relations. Acredita em quebrar tabus e na educação para a diferença, temas que aborda duas vezes por mês, na Miranda, em #ÀFlorDaPele.

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