Durante anos não pintei os lábios de vermelho. Tinha vergonha, achava que ficava vulgar, que meninas ‘bem-comportadas’ não pintavam os lábios de vermelho, que me conotava com algo de negativo e superficial. Ficava-me pelos gloss um tanto ou quanto mate ou metalizados, em tonalidades mais ou menos amorosas de rosa, sem o atrevimento e a maturidade do carmim, atípica e segura na minha escolha de batom para me iluminar os lábios sem parecer demasiado notada, mulher. Escondia-me sob a segurança de um batom que apelava à delicadeza e ao romantismo, que me embelezava sem me destacar.

Com os anos, aprendi que a segurança feminina é algo que se conquista em pequenos passos e mudanças do nosso dia-a-dia. Coisas tão simples como não ter receio de comer sozinha ao balcão de um café ou restaurante, ou de pegar num batom vermelho e usá-lo todos os dias, sempre, porque o simples facto me enaltece, me deixa bem disposta e, mais do que isso, me dá noção do poder que é ser mulher.

#ÀFlorDaPele: pintemos os lábios!
créditos: Gregory Buzdyk/Unsplash

Já não é a primeira vez que escrevo sobre o uso do batom nos textos da Miranda. Já no primeiro confinamento o fiz. O batom é, ao longo da história, um forte indicador dos tempos de crise e, mais uma vez – e porque a história tem tendência a repetir-se – cá estamos a tê-lo como protagonista de um (triste) episódio da última semana.

O batom tornou-se, nos últimos dias, um símbolo – perpetuado em movimento um pouco por todas as redes sociais e órgãos de comunicação social – de resistência, de empoderamento, de irmandade, de democracia. Mas não nos fiquemos apenas pela história imediata de episódios recentes, recuemos no tempo e vejamos como o batom sempre teve esse superpoder de atração sobre as mais diversas (e poderosas) mulheres que nele souberam reconhecer as suas potencialidades.

#ÀFlorDaPele: irmandade feminina
#ÀFlorDaPele: irmandade feminina
Ver artigo

Aliado da juventude, da beleza intemporal, o boost automático de confiança que nos eleva quase a deusas e que nos convence – a todas – que conseguimos conquistar o mundo. De Nefertiti no antigo Egito – que usava uma substância nos lábios que resultava de besouros esmagados – passando pela Grécia antiga, onde as mulheres gregas usavam uma raiz vermelha chamada “polderos”, misturada com cera de mel, ao século XVII, onde a rainha inglesa Isabel I ficou conhecida pelo seu gosto por maquilhagem e lábios escarlate, até ao início do século XX e às primeiras sufragistas que o ostentavam como símbolo contra a opressão masculina, o batom vermelho continua a ser sinónimo de sedução, símbolo quase de feitiçaria feminina, que encanta homens incautos e que se torna para as mulheres no epíteto máximo de poder e independência feminina.

Está cientificamente comprovado que o ‘efeito batom’ é real, que a sua influência nas mulheres lhes dá confiança, sensualidade, feminilidade, uma espécie de placebo da maquilhagem feminina. Está também cientificamente comprovado – num estudo desenvolvido pela Universidade de Boston e pago pela empresa Procter & Gamble – que uma mulher com batom vermelho nos lábios é percecionada como mais competente e bem-sucedida. Deve ser por isso que intimida tanta gente.

#ÀFlorDaPele: pintemos os lábios!
créditos: Kelsey Curtis/Unsplash

Das divas como Marilyn Monroe a Liza Minelli, passando pela cultura pop perpetuada por Madonna, ao trash punk de Courtney Love, aos anos 90 dos No Doubt, pela boca escarlate de Gwen Stefanni, até aos lábios da fadista portuguesa Gisela João, o batom vermelho democratizou-se, generalizou-se, cresceu, impôs-se.

Eu, há muito que deixei os rosas angelicais e insípidos de lado. Amadureci, descobri o poder do carmim, das suas várias tonalidades, adotei-as todas, passei a sentar-me sozinha ao balcão de um café ou restaurante, sem medo, ostentando os meus lábios pintados para toda a gente ver. Nem a máscara os demove. Citando Elizabeth Taylor: “Prepare uma bebida, passe um batom vermelho e fique calma”. E no próximo dia 24, pinte os lábios de vermelho, ponha a máscara, leve uma caneta na mala e vá votar. Por todas nós.

Mafalda Santos fez das palavras profissão, tendo passado pelo jornalismo, assessoria de imprensa, marketing e media relations. Acredita em quebrar tabus e na educação para a diferença, temas que aborda duas vezes por mês, na Miranda, em #ÀFlorDaPele.