Confesso: também eu, na semana passada, partilhei nas minhas redes sociais o post que circulava com a imagem de Kendall Jenner, 25 anos, supermodelo, socialite, estrela televisiva e uma das irmãs do mundialmente conhecido clã Kardashian; e de Alyssa Carson, 19 anos, astronauta e a mais jovem a concluir o Possum, um projeto financiado pela NASA (agência espacial norte-americana), tornando-se na pessoa mais jovem de sempre a concluir os rigorosos testes aeroespaciais.

A imagem de ambas circulava lado a lado, como se tivéssemos de escolher uma delas, mas onde a mensagem principal que se lia era a de que a sociedade continuava a endeusar e a vangloriar uma mulher com um corpo perfeito, falando dela nos media e nas redes sociais, bastando para tal a publicação de uma imagem em biquíni e permitindo que se crie – principalmente nas raparigas mais jovens – uma visão distorcida e irreal dos estereótipos de beleza. Isto em vez de se falar – com a mesma força e intensidade – do feito de Alyssa Carsson, a mais jovem mulher a concretizar um feito desta magnitude, aquela que aspira tornar-se no primeiro ser humano a pisar Marte.

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E também eu, movida automaticamente pela solidariedade da repercussão da inteligência sobre a beleza, mas também pela minha já assumida antipatia para com o endeusamento que se vive relativamente às mulheres desta família e clã, partilhei o post, sem qualquer comentário da minha parte, mas onde no mesmo se podia ler a legenda original que o acompanhava. “Enquanto muitas mulheres lutam todos os dias para pertencer a posições e ofícios historicamente dominados por homens, a sociedade continua a recompensar o superficial; a estética; o que vende. A mulher não é um ser destinado a ser esteticamente perfeito. Vamos parar de criar ídolos de plástico, que vendem os seus produtos às custas dos complexos alheios.”

Só alguns dias depois de ter partilhado este post, sem qualquer peso na consciência, é que me dei conta do erro que havia cometido: não podemos comparar o incomparável.

#ÀFlorDaPele: Kendall Jenner / Alyssa Carson – comparar o incomparável?
@kendalljenner

É verdade que Kendall Jenner tem o corpo de sonho, irreal e imaginário, que todas nós, simples ‘mortais’, gostaríamos de ter. É verdade que as publicações que faz, onde se vê um corpo sem um grama de gordura fora do sítio, escultural e sem defeitos, com fotos altamente editadas a Photoshop, provocam sentimentos de angústia a milhares de jovens e mulheres em todo o mundo, fomenta visões distorcidas de como o corpo feminino é na realidade ou deve ser, problemas de autoestima, ou uma imagem superficial e vazia de que apenas e só a imagem conta.

Mas – e porque há sempre um mas – não julguemos já a Kendall por ser oca de sentido ou desprovida de inteligência. Não nos esqueçamos que esta jovem mulher, goste-se do estilo ou não, é uma supermodelo que, à custa do seu trabalho – e do seu corpo – foi considerada em 2018 pela revista 'Forbes' a modelo mais bem paga do mundo, gerando uma fortuna avaliada em mais de 30 milhões de dólares.

Além disso, como qualquer comum mortal, tenho sérias dúvidas que a Kendall todos os dias se sinta a deusa maravilhosa que o mundo acredita que ela é, que nunca tenha acordado com uma borbulha no rosto que a fez sentir insegura, ou que, apesar de linda e escultural, não tenha levado uma tampa de um rapaz do qual gostava ou não tenha tido um desgosto de amor. Porque, afinal, a Kendall é apenas uma mulher, e não há mulher que não tenha inseguranças – por mais linda e perfeita que ela pareça ser para o mundo e que não tenha passado por tudo o que foi enumerado acima.

#ÀFlorDaPele: Kendall Jenner / Alyssa Carson – comparar o incomparável?
créditos: Alyssa Carson (@nasablueberry)

E talvez fosse isso que faltou – que me faltou – quando partilhei aquele post. O de ter a consciência de que é mais fácil sentir empatia com uma miúda que, com apenas 19 anos e graças à sua inteligência, está a trilhar terreno numa área marcadamente só de homens, em detrimento de outra que posa em frente a um espelho, em biquíni, com um corpo escultural. E sim, precisamos de ver mais histórias como a da Alyssa Carson e exemplos como o seu, partilhadas e divulgadas nos media mainstream. Mas não o devemos fazer à custa de rebaixarmos e humilharmos outra mulher pelo seu sucesso ou escolha. Cada uma é válida na escolha que faz, e fez, do seu sucesso e caminho.

A questão do valor que cada mulher acarreta em si mesma é algo que ainda é difícil de percecionar nos dias que correm. Recentemente, a modelo portuguesa Sara Sampaio fez um vídeo onde mostrava que, também ela – apesar de ter um corpo perfeito – tinha, acima de tudo, um corpo real. Gravou-se nas mais diversas poses para mostrar que todos os corpos – sejam eles de supermodelos ou de todas nós – dobram, fletem, podem ficar inchados, ter estrias, celulite ou zonas com gordura indesejada.

Também eu, mais uma vez, fiquei a olhar para o vídeo e a achar que a Sara, apesar de bem-intencionada na sua ação, só podia estar a brincar com todas nós. Ali estava ela, dobrando-se e contorcendo-se e nem mesmo assim o seu corpo magro e seco mostrava grandes defeitos. Mais uma vez, partilhei um vídeo reels nas minhas stories onde se caricaturava a situação e onde se via uma mulher a visualizar o vídeo da Sara Sampaio com ar de interrogação, porque, na realidade, esse também foi o meu sentimento imediato, o de questionar: “Mas ela está a tentar enganar quem? O corpo dela, por mais que se esforce e tente mostrar que é como todas nós, nunca será como uma de nós”.

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A questão que me afligiu foi a da minha total falta de coerência: se eu escrevo sobre o movimento #VermelhoEmBelem com a convicção profunda de que se ‘mexe com uma, mexe com todas’, como é que depois caio nesta armadilha de me deixar influenciar negativamente a propósito do corpo de uma mulher, só porque ela é esteticamente perfeita? Mais do que isso, julgá-la, como se só o corpo definisse tudo aquilo que ela é.

Não precisamos de derrubar outra mulher no seu processo daquilo que consideramos sucesso, como tem acontecido nas redes sociais nos últimos dias. Há espaço para cada uma, para cada corpo, para cada profissão. Comparações diretas como a que presenciámos, e da qual eu fiz parte, não nos impelem para frente, antes caem nas mãos de uma sociedade que há séculos coloca as mulheres em armadilhas de comparação. Os modelos podem vir de qualquer lugar, de qualquer uma de nós, pois todo o sucesso é digno de comemoração, não de comparação. Seja a supermodelo que tenta mostrar que o seu corpo também é real, como o da jovem astronauta que sonha em pisar Marte.

Por isso, na hora de julgarmos, ou antes sequer de o fazermos, talvez tenhamos todos de ser mais empáticos – eu incluída.

Mafalda Santos  fez das palavras profissão, tendo passado pelo jornalismo, assessoria de imprensa, marketing e media relations. Acredita em quebrar tabus e na educação para a diferença, temas que aborda duas vezes por mês, na Miranda, em #ÀFlorDaPele.