Enquanto andava às voltas a pensar sobre o que iria escrever como tema desta semana, eis que tive uma pequena epifania quando dei por mim a ver um post internacional sobre a temática da ictiose e de como maio é o mês para a sua sensibilização. Eureka! (ninguém diz "eureka", eu sei, mas deixem-me armar em Arquimedes de Siracusa por breves momentos), é mesmo isto! A resposta está em mim, mesmo à flor da minha pele, e nada como aproveitar este espaço para, mais uma vez, falar sobre ela.
Não querendo tornar-me cansativa, até porque já abordei o tema várias vezes neste espaço, acho importante, mais do que centrar-me apenas num problema de pele em específico, ou naquele de que sou portadora, alertar para o impacto que uma doença desta natureza provoca – a nível físico e psicológico – no indivíduo que a possui. E não, não estou a dramatizar.
A verdade é que o estigma que a sociedade ainda hoje impõe à diferença é grande, e a imagem, por muita competência que se tenha, ainda é um poderoso meio para se conseguir ser valorizado ou, até, para ser ouvido. Tudo o que “magoa” os olhos temos tendência a fechar, não é? E na grande maioria dos casos é isso que as pessoas fazem. Não querem ver, limitam-se a fechar os olhos, pode ser que assim o problema não exista.
Mas ele existe e é real. E quem diz uma ictiose, diz um eczema, diz psoríase, diz todas as peles atópicas que reagem de forma inesperada e se traduzem em vermelhidões, feridas, crostas, manchas, borbulhas. Das manifestações cutâneas mais simples às mais complexas.
Quando tinha mais ou menos uns 16 ou 17 anos, lembro-me de abrir uma hamburgueria perto de minha casa na cidade onde vivia. Na altura, em plenos anos 90, uma hamburgueria era uma novidade impossível de se ficar indiferente numa pequena cidade do Oeste, além de que se encontrava a recrutar pessoal, pelo que eu e mais uma amiga candidatámo-nos. Fomos escolhidas, juntamente com um vasto grupo de outros tantos jovens – ávidos por ter naquela oportunidade o seu primeiro trabalho e forma de ganhar uns trocos – e quando a hamburgueria abriu, lá estávamos nós, prontos para servir os clientes.
Tudo corria bem – apesar da desorganização da gerência, que era tão inexperiente nestas coisas de gerir uma hamburgueria quanto eu – até ao dia em que o dono repara nas minhas mãos e me pergunta: “O que é isso que tu tens na pele?”. Lá lhe expliquei, com a mesma naturalidade como sempre fiz com toda a gente que me pergunta o que é "isto", até perceber que aquela resposta, por muito simplista, inócua ou científica que fosse, já tinha o destino traçado. Rapidamente fui retirada de servir às mesas, posição para a qual tinha sido designada antes de a minha pele “me trair”, e fui rapidamente realocada na cozinha a descascar batatas, onde nenhum cliente me via ou reparava nas minhas mãos. Passado uns dias, o gerente que me contratou chamou-me, disse-me que tinha demasiadas pessoas, passou-me para a mão um envelope com o dinheiro que correspondia aos meus dias de trabalho e nunca mais o vi.
Este é apenas um pequeno exemplo de como a pele pode interferir com o acesso a um trabalho digno, independentemente do nosso valor ou desempenho. É cortarem-nos as possibilidades logo ali, sem nos darem hipótese. Como doença rara que é, a ictiose está longe de ser uma doença que gere interesse de médicos, farmacêuticas, produtos, marcas ou investigação.
A Associação Portuguesa de Doentes Portadores de Ictiose – Aspori – está actualmente parada, o que é uma pena, tendo em conta que conseguiu há cerca de dois anos um feito histórico: a comparticipação de medicação e cremes para os doentes portadores da doença, levando pela primeira vez um grupo parlamentar a falar dela e a pôr o tema na agenda política. Mas ainda há um longo caminho a percorrer para a sensibilização das doenças de pele, em geral, e da ictiose em particular.
Em Portugal não há dados oficiais, não se sabe em concreto quantos doentes são portadores da doença, a maioria dos médicos não tem um conhecimento muito aprofundado sobre a mesma, e a investigação é nula.
Educar para a diferença nunca foi tão importante como agora. É importante sensibilizar a opinião pública e os jovens a aceitar a diferença e a saber lidar e viver com ela, mostrando-lhes – numa sociedade cada vez mais obcecada com a perfeição e com imagens filtradas – que há pessoas reais com imperfeições, com defeitos físicos, longe das imagens de Instagram, que apenas querem ser aceites e, em última instância, respeitadas.
É imperativo denunciar atitudes como a que vivi quando tinha 17 anos – onde, embora não tenha sido dito de forma direta, o motivo pelo qual o fizeram se prendeu com o meu aspeto físico – pois rebaixam a auto-estima e interferem com o desenvolvimento físico e o bem-estar psicológico, levando o indivíduo a uma sensação de não-pertença e, em última instância, à depressão.
Façamos de maio o mês onde mudamos essa atitude, onde promovemos a tolerância e a sensibilização para as doenças de pele. Eu dou voz à minha, como seria natural, mas o meu objetivo é falar por todos os que não têm voz – sejam ou não portadores de ictiose ou de outra patologia cutânea.
Lembrem-se: não é a pele que nos define.
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