Quem nunca teve manifestações como dificuldade em completar frases, lembrar palavras ou nomes, repetir a mesma pergunta, esquecer conversas, eventos novos ou recentes e perder coisas repetidamente? Ou então momentos como ficar desorientado num lugar familiar, ter dificuldade em realizar tarefas habituais ou perder a capacidade de realizar simples contas de matemática?
Todos nós provavelmente já tivemos uma dessas experiências em circunstâncias momentâneas, devido a falta de sono, fome e stress. Mas quando este tipo de problema é de longo prazo, persistente e piora com o tempo, clinicamente chamamos-lhe Declínio Cognitivo ou Deficiência Cognitiva Leve, desde que, apesar dele, a pessoa ainda seja capaz de realizar as suas atividades normais de vida diária.
Mas para percebermos o que realmente acontece com a nossa saúde cerebral, temos de mergulhar num tema fatal: a inflamação celular. Uma inflamação crónica (muitas vezes silenciosa) influencia o nosso humor e as nossas ações, sendo muitas vezes iniciada nos processos da conexão intestino-cérebro. Sim, o que comemos e as decisões que diariamente tomamos sobre a nossa saúde estão a envelhecer o nosso cérebro.
“InflammAging” – o envelhecimento e a inflamação
A inflamação é um processo natural do nosso corpo, fundamental à nossa sobrevivência e, certamente, sem inflamação morreríamos provavelmente em poucos dias. É um mecanismo poderoso que o corpo tem para lidar com a cura de feridas, com infecções, e para ajudar o nosso sistema imunitário na eliminação de micro-organismos. Tem-se mantido na nossa evolução como um mecanismo muito poderoso, mas que com a vida moderna tem sido desequilibrado. Inflamação crónica e prolongada no tempo está literalmente a matar-nos.
Não temos como fugir totalmente. Vivemos estilos de vida muito diferentes e estamos muito mais stressados do que há 10, 15 anos, o que, combinado com um sono de menor qualidade, uma alimentação rica em açúcares (muitas vezes escondidos) e uma vida mais sedentária, são os ingredientes ideais para o envelhecimento por inflamação crónica.
A bola de neve da inflamação crónica
O problema é que o papel da inflamação crónica só mais recentemente está a ser relacionado com os distúrbios do humor e até mesmo da nossa capacidade de tomar decisões. Ou seja, é uma bola de neve: a nossa capacidade de tomarmos boas decisões é ameaçada pela própria inflamação. Significa isto que quando há um risco crescente de inflamação no corpo, por qualquer causa – seja má alimentação (rica em açúcares e alimentos processados), seja falta de exercício, excesso de gordura corporal, más rotinas e estilos de vida desequilibrados – abrimos a porta para mais escolhas que pioram (ainda mais!) a situação.
Basicamente, não conseguimos fazer as escolhas certas porque o nosso cérebro não deixa.
Não se prende apenas com falta de força de vontade ou motivação. Os mecanismos fisiológicos e os neurotransmissores (os mensageiros cerebrais) não nos deixam literalmente pensar e agir pelas boas escolhas para a nossa saúde global e cerebral.
Esse processo ocorre porque a inflamação promove a desconexão da parte do córtex pré-frontal do cérebro e assim travamos o nosso centro de impulsividade: a amígdala. Essa desconexão faz-nos ter escolhas alimentares erradas. E o que acontece novamente? Atiçamos as chamas da inflamação e todo o processo continua num "ciclo de alimentação progressiva". Querem saber como paramos esta bomba-relógio?
Os primeiros passos para a saúde cerebral
- Dizer NÃO ao stress
Resiliência. Capacidade de encontrarmos soluções que tentam contrariar o stress do nosso dia-a-dia.
O stress tem um impacto real nas nossas hormonas, aumentando a produção de cortisol, que reduz os tecidos cerebrais, incluindo o hipocampo. Termos um nível persistentemente elevado de stress é como tentarmos conduzir um carro com um pé no acelerador e o outro no travão. O stress interfere no nosso metabolismo energético, desencadeia alterações metabólicas, leva à ativação do sistema imunitário, inibe a digestão, reduz a capacidade reprodutiva e influencia a expressão dos nossos genes.
O stress deixa uma cicatriz que não se consegue apagar: o organismo paga pela sua sobrevivência após uma situação stressante, tornando-se um pouco “mais velho”. Mesmo que a nossa vida possa ter múltiplos episódios stressantes, o que faz realmente a diferença é como reagimos ao stress e por quanto tempo.
É nessa maior resistência ao stress que podemos definir as estratégias para melhorar a memória e prevenir a sua perda. Meditação 'mindfulness', exercícios respiratórios sincronizados, ioga, terapia de som, 'neurofeedback' e outras tecnologias são ferramentas disponíveis para melhorarmos a nossa resposta biológica ao stress e reduzirmos a nossa "velocidade” de envelhecimento.
- Dieta cetogénica
Muitos fatores podem influenciar por que às vezes nos esquecemos onde colocamos as chaves ou ocasionalmente perdemos o foco. O metabolismo energético do cérebro é um deles. Apesar de representar apenas cerca de 2% do peso corporal total, o cérebro usa quase um quarto das nossas necessidades diárias de energia.
Embora a glicose seja a principal fonte de combustível do cérebro, tem sido rotineiramente demonstrado que as cetonas podem substituir em grande parte a glicose e podem oferecer benefícios adicionais.
Os corpos cetónicos são um subproduto do metabolismo da gordura e são produzidos a partir da gordura que comemos ou da gordura corporal armazenada, seja por meio de jejum prolongado, seja seguindo uma dieta cetogénica – uma dieta com muito baixo teor de hidratos de carbono. A cetose nutricional é definida como uma elevação plasmática dos corpos cetónicos primários, o beta-hidroxibutirato (BHB).
Ancestralmente, contávamos com a cetose durante os períodos de escassez de alimentos, fornecendo ao cérebro uma fonte de combustível alternativa, na ausência da glicose, de modo a conseguirmos poupar o nosso tecido muscular magro. Hoje sabemos que podemos “imitar” esse estado com uma dieta cetogénica.
Muitos estudos demonstraram resultados positivos usando terapias/dietas cetogénicas em vários distúrbios neurológicos, a maioria dos quais relatam melhoria do desempenho cognitivo.
Embora nenhuma pesquisa tenha investigado o efeito das cetonas no desempenho cognitivo em populações saudáveis, os investigadores levantam a hipótese de que mesmo um cérebro saudável pode beneficiar da exposição às cetonas, para possivelmente se proteger contra o declínio cognitivo mais tarde.
Quase de forma contraditória, muitas pessoas descrevem que experimentam maior clareza mental durante a cetose (que acontece durante o jejum intermitente), mas isso ainda precisa ser confirmado por pesquisas clínicas.
Se sente ao longo do seu dia altos e baixos de energia, “neblina cerebral” e outros sintomas de fadiga, e procura os hidratos de carbono para ajudar a sentir-se melhor, pode não gostar de admitir, mas pode ser um escravo da comida.
Assim podemos unir o melhor dos dois mundos. Pense em estabilidade: dieta cetogénica com períodos de jejum e ausência de hidratos de carbono podem levar a menos lanches, menos sonolência, maior perda de gordura e melhoria do foco e produtividade.
Sem glicose? Não há problema. Temos o plano B – as cetonas que vêm da degradação da gordura. Quando a disponibilidade de glicose é limitada, as cetonas atuam como uma fonte alternativa de combustível.
- Mitocôndrias saudáveis
As nossas células produzem energia usando uma fonte de combustível (por exemplo, glicose ou cetonas) para alimentar a síntese de ATP, a nossa moeda de energia celular.
As mitocôndrias são a “casa das máquinas” das nossas células e sabemos que quando melhoramos a saúde mitocondrial estamos a atrasar o processo de envelhecimento celular.
Quando o nosso metabolismo recorre ao uso de cetonas também produz menos espécies reativas de oxigénio (ROS), comparativamente ao metabolismo da glicose. Quando essas ROS se acumulam, podem causar stress oxidativo, que ocorre no processo natural do envelhecimento.
Assim, sabemos que o metabolismo das cetonas promove menos stress celular no nosso cérebro, pode ajudar a reduzir o risco de declínio cognitivo, aumenta a biogénese mitocondrial no cérebro e leva ao aumento da energia.
Quando mantemos as nossas mitocôndrias saudáveis, estamos a melhorar o desempenho cognitivo.
- Suplementos
Considerem os suplementos aquilo para que servem: isso mesmo – para suplementar. Se não tivermos uma alimentação anti-inflamatória, com os alimentos certos para uma boa saúde intestinal, de nada valem os suplementos, sendo muitos deles nem sequer absorvidos.
A ideia da suplementação é transitoriamente assegurarmos que recebemos todos os oligoelementos e nutrientes que dão suporte às nossas células e ao processo da autofagia, que nos ajuda na regeneração celular. Há uma abundância de suplementos bem descritos, como a curcuma, o gengibre, a ashwagandha, os ómegas, a l-teanina, o I3C, a melatonina, quercetina, resveratrol... todos estes suplementos podem ser o nosso suporte a essa autofagia, limpando o nosso corpo, os circuitos do cérebro, e nutrindo as nossas células para reencontrarem o equilíbrio.
Mas, mais uma vez, defendo que é principalmente nas escolhas dos alimentos certos, ou mesmo no jejum intermitente, e na regulação dos níveis de stress, que conseguimos as respostas mais simples e os efeitos mais visíveis. É o regresso ao equilíbrio (homeostasia) que ajuda a memória e a otimização cognitiva.
Os 3 P’s
As pessoas não existem no vazio. Somos todos o reflexo do nosso passado, do nosso meio ambiente e dos nossos estilos de vida. Uma medicina preventiva tem uma abordagem estruturada para reunir todas as informações sobre as circunstâncias únicas de cada pessoa, sobre quem elas são e como realmente é a sua vida e a sua saúde. Se sente dificuldade em manter-se focado na leitura deste texto e em recordar o que acabou de ler, talvez seja o momento certo de procurar um apoio personalizado antes do aparecimento da doença.
Se procura mudar a trajetória da sua saúde, a medicina funcional pode ser para si.
Pessoas – Prevenção – Personalizado. A Medicina que eu defendo e tenho no coração =)
Até já!
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